Valência, terceira maior cidade da Espanha, vem realizando um experimento político. Em junho, após as eleições regionais terem imposto derrotas generalizadas ao Partido Socialista dos Trabalhadores (PSOE), que governa o país, o tradicional Partido Popular (PP), de centro-direita, uniu-se à legenda de ultradireita Vox para formar uma coalizão no governo local.
Esse tipo de acordo em Valência não é inédito em nível regional na Espanha. Mas depois que o primeiro-ministro de centro-esquerda, Pedro Sánchez, convocou eleições gerais antecipadas para este domingo (23/07) – as eleições estavam originalmente programadas para o final do ano – a cidade litorânea oferece um vislumbre do que pode acontecer em nível nacional se a aposta eleitoral de Sánchez der errado.
Depois de quatro anos no governo, a coalizão nacional entre os socialistas e seu parceiro júnior de ultraesquerda Unidas Podemos pode perder o poder. As últimas pesquisas de opinião mostraram o PP com uma vantagem confortável sobre o PSOE, mas distante de uma maioria absoluta sem o apoio do Vox.
O cenário ainda está em aberto, e os dois partidos de direita podem não conseguir assentos suficientes no Parlamento para formar uma coalizão. A distância entre os dois principais partidos espanhóis diminuiu nas últimas semanas. E a Sumar, uma nova aliança de esquerda que inclui o Unidas Podemos, está quase empatada nas pesquisas com o Vox, e poderia se unir a Sánchez para dar a ele um segundo mandato.
Vox ganhando espaço
Se a Espanha de fato se inclinar à direita, estará seguindo a tendência eleitoral recente de alguns países europeus, como Itália, Finlândia, Suécia e Grécia – que registraram aumento do apoio a partidos de direita em eleições nacionais.
O Vox, que foi fundado em 2013 e ganhou assentos no Parlamento espanhol pela primeira vez em 2019, vem apostando em posições duras sobre questões sociais e imigração para aumentar constantemente o apoio ao partido nos últimos anos.
No calçadão de Valência, alguns transeuntes estavam alarmados com essa perspectiva. “É totalmente insano – a pior coisa que poderia acontecer a este país”, disse uma mulher à DW, sobre um eventual governo nacional do PP-Vox.
Muitos dos que se opõem ao Vox temem a abordagem ultraconservadora que ele adota em relação às questões sociais. “Eles querem acabar com a lei do aborto, querem se livrar da lei da eutanásia, dizem que a violência de gênero não existe”, disse uma jovem de Madri. “Tudo isso me deixa muito assustada.”
O governo liderado por Sánchez aprovou uma série de políticas socialmente progressistas para combater a violência de gênero, endurecendo as leis sobre estupro, facilitando a mudança legal de gênero e afrouxando as restrições ao aborto.
O Vox, por sua vez, representa a antítese das políticas sociais do governo de Sánchez. Quer revogar a lei de transgêneros, entre outras, é firmemente contra a imigração, critica a União Europeia e é cético quanto à necessidade de combater as mudanças climáticas.
O líder do PP, Alberto Núñez Feijóo, tentou distanciar seu partido de algumas das posições mais extremas do Vox, mas o líder do Vox, Santiago Abascal, pode muito bem emergir no domingo como o líder que definirá a possibilidade de uma coalizão.
Nem todos no calçadão de Valência estavam pessimistas quanto à perspectiva de um governo PP-Vox: “Isso me dá um pouco de esperança”, disse um homem. “O modelo aqui em Valência certamente seria uma boa solução para todo o país após a eleição.”
Não será simples construir uma coalizão PP-Vox em âmbito nacional, como sinalizam declarações recentes dos líderes dos partidos. Em Valência, o vice-líder regional do Vox, José Maria Llanos, negou em junho a existência de violência de gênero (em oposição à violência doméstica ou ao termo preferido do Vox, violência intrafamiliar). O líder nacional do PP, Feijóo, respondeu imediatamente no Twitter, deixando claro que não concordava. “A violência de gênero existe”, escreveu.
Temas na campanha
Embora as questões da chamada guerra cultural (paridade de gênero, casamento entre pessoas do mesmo sexo e o reconhecimento do passado fascista da Espanha) tenham sido muito destacadas nas últimas semanas, foram as questões econômicas que acabaram dominando a campanha, segundo Omar Encarnación, especialista em política espanhola e professor do Bard College, nos Estados Unidos, disse à DW.
Em pesquisa realizada pelo Centro de Pesquisas Sociológicas (CIS), os eleitores espanhóis disseram que suas principais preocupações eram a crise econômica, o desemprego, os problemas políticos em geral, a assistência médica e a qualidade das oportunidades de trabalho.
A Espanha foi duramente atingida pela pandemia e ainda está sentindo seus efeitos. O país de 47 milhões de habitantes tinha em maio, de longe, a maior taxa de desemprego da UE, com 12,7%.
À medida que o país se aproxima do dia da eleição, Sánchez tentou energizar a base de seu partido invocando os temores dos eleitores centristas sobre os perigos de uma coalizão de direita. Parte da lógica da convocação de eleições gerais antecipadas era unificar rapidamente a esquerda, diz Encarnación.
Feijóo criticou o estilo de governo do primeiro-ministro, fotogênico e internacionalmente popular, que o PP chama de “Sanchismo”. O líder conservador acusou Sánchez de centralizar a campanha em sua personalidade e de oscilar em questões importantes. Sánchez, disse Feijóo em um discurso na última sexta-feira, fez sua carreira “concordando com qualquer coisa e com qualquer um para chegar ao poder e permanecer lá, mentindo sobre questões importantes”.
Os líderes da direita também criticaram Sánchez por ter trabalhado com as forças de independência catalãs e bascas para conseguir que certos projetos fossem aprovados. Ele também perdoou nove líderes da independência da Catalunha presos em 2021, medida que lhe rendeu fortes repreensões do PP e do Vox.
A grande aposta de Sánchez
Sánchez apostou sua carreira política em um cálculo arriscado, que a realização de eleições antecipadas ajudaria a cristalizar o apoio ao seu partido. Mas, no final, talvez não será seu desempenho pessoal que definirá a futura coalizão.
“A eleição provavelmente será decidida pelo desempenho dos partidos menores. As pesquisas mostram o Podemos/Sumar ultrapassando o Vox; se esse for o caso, a aposta valerá a pena”, diz Encarnación.
Se o movimento de Sánchez fracassar e o PP se unir ao Vox para uma coalizão nacional, o parceiro minoritário seria a força mais à direita no governo espanhol desde o fim da ditadura fascista de Francisco Franco na década de 1970. Mas, ressalta Encarnación, “o Vox seria um parceiro muito minoritário em uma coalizão PP-Vox”.
Em alguns países da UE, os partidos tradicionais de centro-direita têm sido criticados por considerarem a possibilidade de romper o chamado cordão sanitário entre os partidos mais tradicionais e a ultradireita. Os conservadores da União Democrata Cristã (CDU) na Alemanha, por exemplo, enfrentaram muitas críticas por tentativas no nível local e regional de votar ao lado do partido de ultradireita Alternativa para a Alemanha (AfD). Esse cordão sanitário não existe na Espanha, diz Encarnación.
“O PP é uma reinvenção do final dos anos 80 do Alianza Popular, um partido neofranquista formado durante a transição democrática no final dos anos 70. E o Vox é uma ramificação do PP”, explica. O nacionalista-conservador Abascal deixou o PP para formar o Vox, que adota uma linha dura em relação ao nacionalismo catalão e viu seu apoio aumentar em meio às consequências da crise da tentativa de independência da Catalunha.
Se as pesquisas de opinião se confirmarem neste domingo, é possível que nenhum partido saia vitorioso ou consiga formar uma coalizão imediatamente, e a necessidade de uma nova eleição é uma possibilidade.
“Aconteça o que acontecer no domingo, os [socialistas] continuarão sendo uma força na política espanhola. E a ascensão do Vox data apenas de 2019”, diz Encarnación. “Dito isso, uma impressão inevitável seria o crescimento das oportunidades da ultradireita.”
*Com DW